Inicialmente prevista para terminar a 30 de dezembro, a mostra “Amor Veneris — Viagem ao Prazer Sexual Feminino” registou uma enorme afluência de visitantes na última semana de 2022 “com enormes filas”, como conta a mentora e curadora Marta Crawford, de pessoas que não queriam deixar de conhecer esta original e impactante exposição.
A boa notícia é que, devido ao grande sucesso, desde que abriu a 24 de junho de 2022, a mesma foi prolongada até 8 de março de 2023, Dia Internacional da Mulher. A New in Oeiras aproveitou a novidade para falar com a psicóloga e sexóloga, que nos garante estar “super satisfeita com esta decisão”, de forma a fazer um balanço dos últimos sete meses, mas também para saber quais são, na opinião da especialista, os maiores problemas na vida sexual dos casais portugueses.
Aprendemos que, afinal, o clítoris tem mais de dez mil terminações nervosas (e não apenas oito mil como se pensava), que o desconhecimento, a vergonha e o receio são ainda barreiras muito fortes quando se fala de prazer sexual feminino, que a comunicação íntima está cada vez mais desastrosa e que a falta de tempo e os guiões pré-definidos que as pessoas têm na cabeça dificultam o percurso da excitação sexual vivido em pleno.
Que balanço faz destes meses de exposição?
Sinto que as pessoas estavam sedentas de poder falar sobre este tema. É como se estivessem secas, desidratadas, e veio mesmo a calhar. Poder falar deste conceito de sexualidade feminina tem sido muito enriquecedor e há uma enorme curiosidade e vontade de explorá-lo por parte de quem nos visita. As pessoas têm gostado muito, o feedback tem sido muito positivo. Estamos dentro de um espaço que metaforicamente representa um corpo feminino e à entrada há uma escolha para um dos lados. Temos a parte do consentimento, com uma viagem que começa pelo cérebro, o principal órgão sexual, a pele, o maior, e o clítoris o único. E a outra parte que tem a ver com a violência sexual contra as mulheres. Quero ter sempre uma causa associada às exposições, é a natureza do conceito do Musex.
É a primeira exposição do Musex — Museu Pedagógico do Sexo. Estava já a ser pensada há muito tempo?
A ideia do Musex, criado em 2010, sempre foi ser um espaço para crianças, jovens e adultos. Os museus do sexo pelo mundo são a partir dos 18 anos e eu queria que este fosse também para crianças e jovens, daí a preocupação em que haja um serviço educativo para todos os anos, desde o primeiro ciclo até ao ensino universitário. Nesse conceito, nessa ideia de museu, tinha desde início a ideia de ter também uma clinica, a parte da ligação com a ciência, com a comunidade, com as escolas e as causas. Era isso que queria englobar. Queria contrariar esse conceito de museu do sexo que está no imaginário das pessoas, que deixam cair a parte do ‘pedagógico’ e trazer arte, fazer com que a sexualidade fosse enaltecida através da arte. Foi muito curioso perceber que havia recetividade de museus dentro e fora do País para cederem obras que aqui temos expostas. Algumas pessoas têm no seu imaginário uma fantasia de museu sexual que nunca viram, mas existe na sua cabeça. Há pessoas que deixam cair o ‘pedagógico’, só pensam no sexo e chegam cá e veem que é um museu de arte contemporânea. Por outro lado, há pessoas que já sabem o que esperar, sabem que não vão encontrar aqui vibradores ou algo do género. Por isso, impacta de forma muito diferente cada pessoa. Mas há atividades que têm tido um enorme sucesso, como uma que se chama “espuma dos desejos”. Pedimos ao público que escreva um desejo, amachuque o papel, e pode ler os desejos dos outros. É uma atitude voyeurista, mas numa ideia de partilha e liberdade. Há zonas da exposição que também remetem para essa dimensão voyeurista de espreitar por buracos, em algumas partes. E penso que as pessoas gostam muito disso.
Há planos de levar a exposição para outros locais?
Muitas pessoas perguntam porque é que a exposição não fica permanente. E a verdade é que foi feita para ser temporária, se fosse permanente tinha que ter outras características. Hoje em dia vejo o Musex como um conceito que pode fazer exposições em qualquer sítio, não tem que ter um espaço físico. Então esta exposição pode viajar, mas estou sempre dependente do apoio de alguma entidade com capital, de um município que queira patrocinar a montagem da exposição. Esta foi adaptada ao Palácio dos Anjos, é curioso porque não se percebe os espaços do Palácio durante a visita. Houve um grande trabalho, não dá para tirar daqui e meter noutro sítio da mesma forma. Até porque a maior parte das obras não são minhas, apesar de algumas virem a fazer parte do acervo do Musex. Posso pensar levar esta exposição com este conceito para outros locais, já houve interesse por parte de São Paulo, Suíça, Funchal, mas tem que ser bem pensado logisticamente e financeiramente.
O que é que a própria Marta aprendeu com esta exposição?
Tem sido uma aprendizagem constante ver a recetividade das pessoas a esta temática. Falamos de vários temas associados na programação paralela, como a violência contra as mulheres, a parte do prazer sexual feminino, a arte da sexualidade e o próprio serviço educativo. A ideia é trazer um debate constante. E como as pessoas também são convidadas a partilhar as suas próprias experiências, todos esses momentos de interação têm sido muito enriquecedores. É isso que vai acontecer este sábado, dia 14 de janeiro. Vou fazer uma roda de conversa sobre sexualidade. A ideia é ficarmos todos em roda, como se fosse à volta de uma fogueira, e as pessoas vão entrando e podem deixar num saco as perguntas que tiverem, porque ficam inibidas de falar em voz alta. Depois vou tirando os papéis, vou lendo e vamos falando, as pessoas vão intervindo. Tem sido uma das atividades em que estou totalmente envolvida e que percebo que as pessoas ficam satisfeitas por ter um espaço para falar sobre sexualidade sem ser num consultório, sem ter que pagar, porque é gratuito. E também gostam de ouvir as experiências dos outros.
Quais são os grandes impactos que a exposição tem tido no público?
Penso que o grande impacto é despertar certo tipo de sentimentos. O facto de haver uma escolha quando se entra, o lado com consentimento e o de sem consentimento, deixa algumas pessoas muito impressionadas e a parte do não consentimento causa muito impacto, a ideia era mesmo criar desconforto. Tanto que esse lado é muito mais escuro, as obras são todas relacionadas com violência, tem uma sonoridade pesada, que mexe cá dentro. Tivemos reações de constrangimento, até nas visitas de escolas, e pode ser um gatilho para algumas pessoas. Por isso decidi criar um mecanismo de apoio direto, por exemplo, às pessoas que vêm das escolas é-lhes distribuída informação de que, se algum conteúdo criar perturbações, podem enviar-me um email para falarmos sobre isso.
Há certos temas ligados ao sexo, em geral, que continuam a ser tabus para os portugueses?
Não sei se são tabus, mas há sem dúvida um desconhecimento. O tabu tem a ver com a desinformação e com os equívocos. Aprendemos coisas no espaço da nossa família, da escola, da comunidade, que influenciam a nossa perceção do mundo, mesmo coisas tao simples como por exemplo o que é a pílula do dia seguinte. Se em casa se considerar que é algo abortivo ou for tabu, eu vou ter ideias erradas sobre isso, e até sobre o meu corpo. O tema do prazer sexual e do hiato que existe em termos da perceção do prazer, por exemplo, num casal heterossexual, entre homens e mulheres, é constante. No contexto das relações, continua a haver um que pressiona o outro, um que aceita porque se sente culpado. E todas estas dinâmicas interferem no prazer sexual, especialmente no feminino. Há um que pressiona, um que aceita, um que cede, um que diz que sim mas é coagido pelo parceiro, um que acha que tem que ter a mesma vontade que o parceiro e entra num rol de culpabilizações. Tudo isto continua a acontecer. É interessante perceber, por exemplo, que durante este período da exposição houve um evento muito significativo. Em novembro foi disponibilizado um estudo, feito por um médico americano que trabalha com pessoas trans, que investigou a contagem das hastes do clitóris, da quantidade de terminações nervosas. Fazíamos sempre a referência que um clitóris tinha cerca de oito mil terminações nervosas, o dobro ou triplo comparativamente ao pénis. E percebemos, com esse estudo, a falta de informação que tínhamos, mesmo as pessoas dentro da minha área, fazíamos sempre a referência às oito mil, e afinal temos mais de dez mil terminações nervosas no clítoris.
Considera que a educação sexual nas escolas devia ser mais trabalhada e aprofundada?
Sem dúvida. Ainda falta educação sexual nas escolas, na família, na sociedade. As pessoas querem fazer parte da dita normalidade e deixam-se levar por opiniões que às vezes não são as corretas. Na escola não se fala do prazer, de intimidade, das fronteiras, da comunicação íntima. Não se pode começar a falar de sexualidade com os miúdos quando são adolescentes, tem que ser mais cedo. Por exemplo, nós sabemos, pelos estudos e empiricamente, que as mulheres não têm prazer através da penetração, porque a vagina em si é um espaço com poucas terminações nervosas. E o prazer sexual feminino fica afetado porque ainda há aquela ideia de que se toca ali porque “coitadas não conseguem ter prazer como devia ser”. Devia ser para quem? O que é certo é que a sexualidade tem que ser uma coisa de intimidade e prazer mútuo. Não pode ser um a pressionar o outro, senão já estamos do outro lado da exposição, no não consentimento. E isto está até dentro dos próprios casais. Tento abordar sempre estas questões nas visitas guiadas que faço. Há situações muito ténues, em que as mulheres sentem que têm que ceder mesmo quando não querem, e acabam por ter cada vez menos vontade de estar com o parceiro. Não pode ser só o orgasmo que conta, tem que ser a experiência, a intimidade, a parte da excitação sexual.
Quais são, na sua opinião enquanto psicoterapeuta, os grandes problemas da vida sexual dos casais portugueses?
As questões da comunicação íntima estão cada vez mais desastrosas. As pessoas têm cada vez mais dificuldade em partilhar e ouvirem-se. A escuta é muito importante. Por isso é que é tão interessante quando entram no terapeuta, porque este torna-se um tradutor automático do que o A diz ao B. Não há comunicação íntima porque as pessoas não a treinam. Partem do princípio que o outro adivinha o que ele quer. Algumas têm receio porque não sabem e não descobriram o prazer, através da autodescoberta. Vejo em consultório que há a ideia de que o homem é que tem que tocar na mulher, apenas. Há vergonha, há falta de informação. O tempo também está pior. As pessoas vivem tudo muito apressadamente. Há muita coisa a acontecer, a rotina, o trabalho, e pronto há uma ‘rapidinha’ ao fim do dia que não dá gozo nenhum. É preciso tempo para que o percurso da excitação sexual seja vivido em pleno. E as pessoas continuam com guiões na cabeça, um imaginário sobre o que é suposto fazer na intimidade, começa assim, acaba assim. Parece que depois é tudo igual, não há nada de novo. Relativamente às questões da normalidade, continuamos todos muito confusos. O que é suposto fazer, qual a frequência certa? As pessoas querem ser normais, seja o que for que isso queira dizer. Quando um casal não está alinhado, por exemplo, faz referência ao parceiro anterior como melhor. E isso influencia negativamente aquela comunicação. Por outro lado, há uma coisa boa. Hoje em dia as pessoas são mais rápidas a pedir ajuda. Quando há algum problema na relação, pedem ajuda a terapeutas, já não têm essa inibição. Já tentaram tudo, ir ao motel, comprar um brinquedo sexual e quando nada ajuda, vão à consulta. Há mais emergência para resolver os problemas do que no início, quando comecei a dar consultas há umas décadas.
Para o futuro, quais são os caminhos desta exposição e do Musex?
Vamos fazer um livro sobre esta exposição, com fotografias e textos de várias personalidades envolvidas. Já estou a pensar numa próxima exposição, levar também esta a outros locais. Hoje em dia não ter um espaço fixo para o Musex já não me preocupa, não é determinante para fazer acontecer. Tudo é possível.
Conheça a programação paralela da exposição em janeiro. No mês seguinte, estão previstos alguns eventos dedicados ao Dia dos Namorados, por isso esteja atento para não perder iniciativas que sejam do seu interesse. De seguida, carregue na galeria para ver alguns espaços da mostra “Amor Veneris — Viagem ao Prazer Sexual Feminino”.