Durante mais de 14 anos, o conhecido Zé Livreiro viveu muitas situações peculiares no seu ambiente de trabalho. “Houve clientes que acreditavam que Saramago era uma autora chamada Sara Mago. A senhora estava totalmente convencida de que tinha sido ela a receber o prémio Nobel“, partilha. Embora isto possa parecer incrível, não é um caso único. “Outros colegas já me relataram ter passado pela mesma situação.”
Zé Livreiro é também o responsável pela página Confissões de um Livreiro no Instagram, onde já acumula mais de 22 mil seguidores. Desde o início, optou pelo anonimato e revela pouco sobre a sua identidade. O seu nome verdadeiro continua envolto em mistério, mas sabemos que tem 35 anos, é casado há dois anos e tem um filho que nasceu em 2024 e está prestes a iniciar a creche. No que diz respeito à cidade onde reside, prefere manter essa informação em segredo.
“O anonimato é uma declaração, porque o lojista é uma espécie de figura invisível para os clientes”, comenta com humor. No entanto, essa não é a única razão para a escolha. Desde a juventude, teve blogs onde escrevia sem revelar a identidade, pois sempre se sentiu “bastante inseguro” em relação ao que produz. Ao não se identificar, sente que alivia um peso e não se preocupa com possíveis julgamentos dos leitores. “É como se fosse uma personagem que criei. Além disso, as redes sociais demonstram que, ao mostrarmos uma imagem, acabamos por revelar mais do que apenas o conteúdo. Aqui, concentram-se no que eu quero transmitir”, explica.
Entrou no universo das livrarias por volta de 2010. Após concluir o curso superior, procurava emprego na sua área, mas sem sucesso. Como sempre teve uma enorme paixão pela leitura, decidiu tentar a sua sorte numa livraria. Confessa que a ideia era que fosse uma experiência temporária “até encontrar algo melhor”. Sempre revelou uma personalidade tímida e o atendimento ao cliente parecia-lhe desafiador. Embora a adaptação tenha sido complicada no início, acabou por se adaptar e, desde então, nunca mais abandonou a profissão. “Já estou neste ramo há tempo demais”, brinca.
O comodismo é uma das razões que o levaram a permanecer na profissão. Gosta, naturalmente, de estar rodeado de livros e aprendeu a interagir com os clientes. Com o passar do tempo, percebeu até que “alguns clientes valem realmente a pena”. “Encontramos pessoas que, de outra forma, nunca teríamos a oportunidade de conhecer. Acima de tudo, sinto-me útil.”
Ver esta publicação no Instagram
A sua conta de Instagram comemorou dois anos a 7 de setembro e, inicialmente, não pretendia abordar livros, mas sim partilhar desabafos da sua vida profissional. Criou a conta após um dia complicado de trabalho, num momento em que se sentia desanimado. “O atendimento ao público pode ser exaustivo. Um simples comentário de um colega ou um cliente pode arruinar o dia”, admite.
Depois de mais uma jornada de trabalho, escreveu um texto em forma de desabafo sobre uma situação que o aborrecia, envolvendo um colega. Sem pensar duas vezes, usou o nome verdadeiro do colaborador e, no dia seguinte, foi confrontado. Apanhado de surpresa, confirmou que a conta era sua. Foi nesse momento que o enfoque da página mudou totalmente, começando a dedicar-se mais ao universo literário — acreditava que havia uma lacuna no chamado Bookstagram. “Faltava algo deste género.”
As histórias que partilha na página são sempre originais e “fogem ao convencional”. Zé Livreiro procura relatar episódios que o tenham emocionado, seja de forma positiva ou negativa. Durante o dia, tem sempre um bloco para anotar ideias.
Contudo, há dias em que não ocorre nada interessante. Nesses momentos, é ele que procura o conteúdo. Se nota que um cliente está vulnerável e precisa desabafar, ele aproxima-se para conversar. “O lojista é uma figura tão distante das relações das pessoas que elas acabam por se sentir mais desarmadas e frágeis”, comenta o livreiro, cujos autores preferidos são Clarice Lispector e Gonçalo M. Tavares.
Além da cliente que pensava que José Saramago era uma mulher chamada Sara Mago, Zé Livreiro tem muitas outras histórias memoráveis. Já experienciou um homem a gritar e a proferir palavrões dentro da loja, pedindo-lhe para falar mais baixo, dada a presença de crianças. “Ele comprou uma série de livros e pediu-me para os embrulhar para depois os abrir do lado de fora.” Foi, assim, uma forma de vingança.
Outra situação que recorda foi atender uma mulher que não sabia ler, algo que percebeu apenas mais tarde. “Foi uma escalada até eu perceber. Inicialmente, ela parecia rude na forma como me tratava, mas isso era apenas porque se sentia humilhada. Veio buscar um livro para o neto e estava desconfortável ali. Teve uma vida muito difícil e triste. Tento fazer algumas perguntas mais exploratórias para ver o que se pode obter. Chamo-lhe egoísmo altruísta”, acrescenta.
Ao longo destes dois anos, ninguém conseguiu descobrir a sua identidade. Contudo, suspeita que uma cliente tenha algumas ideias sobre quem ele realmente é. “Ela mostrou-me um print de um story onde falava sobre um livro, e comecei a rir, pois não estava à espera e achei estranha a situação. Lembro-me de ela ter dito: ‘Não me diga que é o senhor’, e eu continuei a rir, mas disse que não era.”