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Visitámos a mostra que nos faz viajar pelas comunidades indígenas do Brasil — é imperdível

"Povos Originários — Guerreiros do Tempo", do fotógrafo brasileiro Ricardo Stuckert, está no Palácio Anjos, em Algés, até 16 de julho.
As imagens são impactantes.

O ano era 1997 e o local, a Amazónia. Ricardo Stuckert, jovem fotógrafo na época, fazia a sua primeira viagem à floresta tropical, entusiasmado para se integrar no seio da comunidade de Nazaré, onde viviam os Yanomami, um dos maiores grupos indígenas da América do Sul. Estava em trabalho, pronto para registar as melhores imagens para a revista “Veja”. O que o brasileiro não imaginava era que uma dessas fotografias viria a tornar-se numa das mais importantes da sua carreira — e que a jovem indígena, que fotografou na altura, iria ser, mais tarde, o mote para criar um projeto maior.

O olhar profundo e penetrante de Penha Góes, com 22 anos, hipnotizou a lente do fotojornalista. Tanto, que 17 anos depois, em 2014, quis voltar ao mesmo local para tentar encontrá-la. A busca durou alguns meses, mas foi bem sucedida. Penha, então com 39 anos, tinha o rosto marcado pelo tempo mas o olhar, esse, continuava igual. 

Foi então que Ricardo decidiu embarcar numa importante missão: registar, de forma ampla, a vida dos indígenas brasileiros, os povos originários do Brasil, que tanto o fascinava, prestando-lhes homenagem e, ao mesmo tempo, tornando-os mais conhecidos fora do seu território, de forma a mostrar a importância da sua cultura e de todos os elementos que envolvem o seu ancestral e místico universo.

Depois da viagem à aldeia Yanomami, o fotógrafo iniciou uma verdadeira jornada pelas mais diversas regiões do Brasil, à descoberta das comunidades indígenas. Passou pelo Acre, Amazonas, Alagoas, Bahia e Mato Grosso. Ao todo retratou nove etnias, como os Yanomami, os Ashaninka, os Yawanawá, os Kalapalo, os Kayapó, os Pataxó, os Kaxinawá, os Xukuru-Kariri, os Korubo e outros povos isolados, captando as singularidades de cada uma.

“Descobri um universo fantástico. Cada aldeia que visitei foi uma aprendizagem. O modo de viver dos indígenas é fantástico. Eles vivem com simplicidade, com aquilo que a floresta oferece. Têm orgulho de manter a cultura preservada. Ensinam-nos a importância de viver em comunidade, de respeitar e preservar a natureza“, conta à New in Oeiras. 

E é toda essa aprendizagem, essas importantes experiências, tradições milenares que ficaram registadas em imagens, que o público português pode agora conhecer. A exposição “Povos Originários — Guerreiros do Tempo” foi inaugurada na passada sexta-feira, 21 de abril, no centro de arte contemporânea Palácio Anjos, em Algés. É a segunda mostra do fotógrafo em Portugal.

Penha Góes, com 17 e 39 anos, respetivamente.

Em declarações à NiO, Ricardo confessa que não podia estar mais feliz. “Portugal sempre foi um País muito acolhedor, sinto-me em casa. Já fiz uma exposição em Cascais, sobre o presidente Lula da Silva, e agora tenho a chance de apresentar este trabalho documental sobre estes povos tão importantes para a identidade cultural do meu país. Fico feliz que os portugueses tenham a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre os povos originários brasileiros.Acredito que as fotografias vão permitir ao público apreciar, refletir e interagir com o universo indígena, com essas pessoas tão importantes que vivem em harmonia com a natureza e que lutam continuamente para manter sua cultura viva e resistir aos seus invasores“. 

Dividida por quatro salas em dois pisos, a mostra reúne imagens das diferentes tradições, rotinas, características e comportamentos daquelas comunidades. Visualmente impactantes, as imagens prendem a atenção pelas cores, sombras, pelo céu estrelado, pelos olhares e sorrisos. Será uma verdadeira imersão pela natureza destes “guerreiros do tempo”, uma viagem que pode fazer sem sequer sair do concelho. “Através das fotografias podemos trazer o distante para perto, podemos mostrar o mundo, ter acesso a uma realidade diferente daquela que estamos acostumados”, afirma o fotógrafo.

“Os guardiões da floresta” e o poder do tempo

Ricardo Stuckert partilha com a NiO algumas aventuras que viveu ao visitar as comunidades. “São muitas histórias e reflexões. Mas uma coisa que me chamou muito a atenção, foi a forma como os indígenas se relacionam com o tempo. Uma vez fui fotografar o cacique Raoni Metuktire, uma das principais lideranças indígenas e referência na luta pela preservação da Amazónia. Viajámos juntos de Brasília para a aldeia Metuktire, no Parque Indígena do Xingu, no norte de Mato Grosso. Era uma sexta-feira e eu voltaria no domingo, ou seja, teria pouco tempo para fazer as fotos. Na sexta-feira mesmo, percebi que o Raoni não estava à vontade para ser fotografado”, começa por contar. 

“No sábado, acordei bem cedo, por volta das 5 horas da manhã, tomei café, mas sentia que ainda existia uma barreira invisível. Decidi, então, guardar a câmara na mochila e aproveitar o dia junto com a comunidade. Fiquei só ouvindo, prestando atenção nas rodas de conversa sobre as histórias dos ancestrais, as posições do sol e da lua. À noite, comi uma tapioca com peixe assado e fui dormir. No domingo, nem encostei na máquina. Depois, olhei para o relógio, eram 14 horas, e fui arrumar as coisas para ir embora”, relata Ricardo, com a certeza de que, para ganhar a confiança e respeito deles, o tempo e a paciência são os melhores companheiros.

“Estava muito calor, um sol forte, e o Raoni perguntou-me: ‘Vamos tomar um banho de rio?’, ‘ Vamos’, respondi. E ele lembrou-me, ‘Ué, você não vai levar a máquina?’. Só aí notei que não sabia onde a tinha deixado. Foi como se tivesse virado uma chave: saiu a nuvem, entrou o sol, estava todo mundo feliz. Foi aí que aprendi que tudo na vida é uma questão de tempo, de ouvir, observar, respeitar o tempo do outro. O tempo é dos guerreiros do tempo. Na aldeia não tem essa pressa, essa ansiedade da cidade. Na floresta, reaprendemos a arte de parar, respirar e conversar, coisa que não fazemos mais hoje porque tudo é online. Lá, é olhar nos olhos, tocar, sentir, refletir”, conclui Ricardo. 

Através do seu olhar sensível e das técnicas profissionais adquiridas ao longo de três décadas de carreira, o fotógrafo mostra a diversidade e pluralidade da cultura indígena. Aliás, para Ricardo, é essencial fazer com que estas fotografias viagem pelo mundo, não só para dar a conhecer a magnitude destes povos, que devem ser admirados e respeitados, mas também como um alerta.

“Espero que as imagens dessa exposição promovam uma reflexão sobre a importância dos indígenas como os verdadeiros guardiões das florestas. Eles são os responsáveis por manter as florestas brasileiras sãs. Eles precisam que seus territórios sejam demarcados, que suas comunidades não sejam invadidas, precisam ser respeitados. Preservar essas populações e as terras habitadas por elas é hoje uma questão de sobrevivência para todos nós“, afirma.

Stuckert com jovens indígenas.

Nomeação ao Óscar, relação com Lula da Silva e a Fotografia no seu ADN

Atualmente com 52 anos, o brasileiro tem mais de 30 anos de experiência, mas a arte de fotografar já lhe estava no sangue muito antes. Na verdade, é uma tradição familiar, que tem passado de pais para filhos. Ricardo é já a quarta geração de uma família de fotógrafos. “Depois da Primeira Guerra Mundial, o meu bisavô, Eduardo Roberto Stuckert, embarcou de Lausanne, na Suíça, em direção à América do Sul, sem destino definido. Além de fotógrafo, era pintor e tradutor. Passou o primeiro ofício aos filhos, depois aos netos. Na minha família, entre vivos e mortos, são 33 fotógrafos”, conta.

Hoje, Ricardo atua predominantemente nas áreas de fotojornalismo e fotografia artística documental. “Na minha casa sempre respirámos fotografia e acredito que ela tem este papel fundamental de documentar, de manter a memória viva dos factos, pessoas e acontecimentos. Ela tem esse poder universal de dialogar através das imagens. Não são precisas palavras, a imagem fala por si só. Eu, por exemplo, procuro passar através das minhas fotos, a emoção, o sentimento, o que eu penso, as minhas ideias. A fotografia é a minha forma de vida, é a forma como eu vejo o mundo”, garante.

No início da carreira trabalhou em órgãos de comunicação social brasileiros como o jornal “O Globo” e a revista “Veja”. Mais tarde, foi ao longo de oito anos, fotógrafo oficial da Presidência da República no Brasil, nos primeiros dois mandatos (2003 a 2010) de Lula da Silva, cargo a que regressou no início deste ano, com a reeleição do político.

À NiO, Ricardo fala deste percurso. “Desde 2003 que acompanho o presidente Lula. Ele é carismático, uma pessoa simples. Ele é aquilo que você vê nas fotos, uma pessoa que gosta de estar ao lado do povo. É uma relação de profundo amor, respeito, afeto e gratidão. É ali, no meio de uma multidão ou abraçando uma criança, um idoso, um trabalhador que ele se realiza. O meu maior desafio é mostrar às pessoas o que o Lula é por meio da fotografia. Uma das minhas fotos favoritas mostra justamente isso, é uma imagem a preto e branco de Lula abraçando um mar de gente em Barbalha, no Ceará, em 2016. Em cada rosto, tem uma expressão diferente. Cada olhar retrata um sentimento”. 

Recentemente foi também diretor de fotografia do filme “Democracia em Vertigem”, da brasileira Petra Costa, nomeado ao Óscar de Melhor Documentário em 2020 pela Academia de Hollywood. “Foi uma experiência fantástica. Documentar aquele período conturbado da política nacional foi muito importante para a nossa história e também para a nossa memória. O filme retrata um período conturbado da política nacional. Ver este filme no Óscar foi emocionante. Lembro-me, como se fosse hoje, ao ver um teaser no ecrã do Teatro Dolby, da emoção e do sentimento que este momento me causou”, confessa.

Ricardo Stuckert é um dos mais conceituados fotojornalistas brasileiros. Pode acompanhar o seu trabalho pelo Instagram. Não deixe de visitar a mostra “Povos Originários – Guerreiros do Tempo”, promovida pelo Município de Oeiras. Na inauguração esteve presente o Presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais, assim como o projetista da exposição, Chico Sassi.

A exposição está aberta ao público até 16 de julho, de terça-feira a domingo, entre as 11 e as 18 horas (encerra às segundas e feriados). Os bilhetes custam 2€ e podem ser adquiridos na bilheteira do Palácio Anjos ou online, através do site da Ticketline. O Palácio Anjos situa-se na Alameda Hermano Patrone, em Algés.

Carregue na galeria para conhecer alguns dos espaços da mostra, fotografias que vai encontrar por lá e imagens da inauguração. 

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