Quando deixou cair o manto com que entrou no palco principal no último dia do NOS Alive, Sam Smith revelou uma indumentária que serve como metáfora perfeita para o seu percurso artístico. Uma camisa branca formal e uma gravata semiencobertas por um enorme corpete barroco, do mesmo dourado que as calças e o chapéu de motoqueiro de cabedal. A cor escolhida calhou bem: Smith reinou em Algés e assinou um dos melhores concertos de todo o festival.
Ao longo da sua carreira, Smith sofreu esta metamorfose espelhada na roupa que trouxe: de artista de prestígio que a BBC convidaria para uma noite de gala a alguém assumida e despudoradamente queer, atirando-se de cabeça para uma montanha de glitter, cor, movimentos hipersexualizados e imagens transgressivas. A adoção de uma identidade não-binária e a liberdade que daí adveio valeu-lhe elogios, mas também muitas críticas de setores mais conservadores e fãs que se sentiram atraiçoados pela mudança. Isto porque a sua sonoridade também transitou de r&b e soul de recorte clássico, como uma espécie de Adele com barba, para uma pop provocante, na tradição dos tempos áureos de Madonna.
O próprio alinhamento do concerto refletiu a evolução da estrela pop britânica, começando nos temas mais antigos e ortodoxos e terminando num espetáculo de provocação, do Cooljazz ao Trumps. “Stay With Me” deu início com o seu balanço gospel, suportada por um coro extraordinariamente talentoso e uma banda que não lhe ficou atrás. “I’m Not the Only One” manteve essa toada de soirée cultural, ao passo que “Like I Can” deixou-se levar pelo choro da guitarra elétrica e “Too Good at Goodbyes” foi guiada pela acústica.
Até então, estávamos no domínio da soul consensual que os pais gostam mais do que os filhos, mas quando Sam Smith regressou ao palco com uma camisa de folhos branca e disse que este espetáculo era “sobre liberdade”, algo estava prestes a mudar. Não foi, contudo, uma passagem súbita — a mestria deste concerto esteve também na forma subtil como foi puxando pelo público. “How Do You Sleep?” e “Dancing With a Stranger”, por exemplo, foram desbravando caminho para as temáticas mais eróticas que se seguiriam, sendo canções pop que tanto podem passar na discoteca como no centro comercial.
“Lay Me Down”, com Smith de vestido roxo, foi uma música de fazer Algés voltar a alagar, surgindo em formato de dueto com a cantora Ladonna. Primeiro com apenas piano a acompanhar, depois com a restante banda a entrar para um desenlace emocional. Seria a última vez que ouvir-se-ia algo mais coadunado com a fase inicial de Smith. O que se seguiu foi a transformação do NOS Alive “num enorme bar gay”. A trupe de dançarinos que até então se limitara a coreografias mais ortodoxas entrou numa espiral de twerk, balanços de ancas, vogueing e beijos na boca arrancados com ferocidade. No meio, Smith, ora de preto, ora com o corpo coberto de plumas cor-de-rosa, ia comandando a sua horda sexual com “Gimme”, “Lose You” e “Promises”, enorme tema composto com Calvin Harris.
Sam Smith fez questão que o seu espetáculo fosse uma celebração da cultura LGBTQIA+ em todas as vertentes, dando um pezinho nos géneros musicais que mais a impactaram. “I’m Not Here to Make Friends” deu azo com o seu ritmo disco a “He’s the Greatest Dancer” das Sister Sledge; já “Latch”, single dos Disclosure que elevou o seu nome à escala mundial, foi precedido pelo icónico sample de “Right Here, Right Now” dos Chemical Brothers. Nesta fase, o público, qualquer que fosse a sua orientação sexual ou género, já estava em clara ebulição, mas irrompeu em euforia quando Smith revelou estar a usar uma camisola da seleção nacional feminina de futebol portuguesa. O momento serviu para um momento de dança ao som de “I Feel Love” de Donna Summer e “You Make Me Feel (Mighty Real)” de Sylvester, com a estrela a pôr-se de tronco nu.
O último ato do seu concerto — porventura o mais esperado e, por algumas pessoas, temido — teve depois sequência. Smith entrou com um enorme véu a cobrir todo o corpo e uma coroa, puxando pela imagética blasfema, enquanto cantava “Gloria”. Quando o pano caiu, lá estava apenas de tanga de couro, rendas e botas de cano alto, com os mamilos tapados por cruzes incrustadas de joias brilhantes. A frase “express yourself don’t repress yourself” da canção “Human Nature”, de Madonna, repete-se até tornar-se num grito selvagem de nu metal. Silêncio. A antecipação é quase palpável. Quando se começa a ouvir estrondos metálicos e sons industriais, é hora de “Unholy”, o tema que põs os EUA de cabeça perdida quando Smith a interpretou nos Grammys com imagética satânica.
Aqui não foi diferente. Enquanto Kim Petras — a artista convidada desta música — se fazia ouvir a partir dos ecrãs, Smith estava de cartola com cornos e um tridente vermelho: Se parece que o intuito era fazer diabruras, é porque era mesmo. Mas também o foi porque pessoas como Smith cansaram-se de passar a vida a ouvir que iam para o inferno ou que eram abominações da natureza. Se a fama já existe, há que ter o proveito.
No mesmo dia de Sam Smith tocaram os Queens of the Stone Age. Leia também a cobertura do concerto de Lizzo e de Arctic Monkeys, que tocaram no dia 7 de julho, assim como a crónica do concerto dos The Black Keys e a análise à atuação dos Red Hot Chili Peppers no dia 6 de julho no NOS Alive.
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