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Richie Campbell: “Quero chegar aos 70, olhar para o meu catálogo e sentir-me realizado”

“Heartbreak & Other Stories” é o novo álbum do cantor português, que gostava de conseguir superar o último, “Lisboa”.
Richie Campbell está de volta.

2017 foi um ano de viragem para Richie Campbell. O cantor português havia construído um percurso de sucesso enquanto músico de reggae — tornando-se no artista do género mais popular por cá — quando se virou para o R&B e o dancehall moderno, cruzando-o com balanços afro já tão típicos da fusão urbana da capital portuguesa. Assim nasceu “Lisboa”.

Foi um disco que redirecionou a sua carreira e revolucionou a sua identidade artística. Atraiu novos públicos, aproximou-se da chamada “música urbana” e do universo do hip hop, fê-lo entrar num novo circuito — ou, melhor, fez com que deixasse de ser tão rotulado como um artista de “género”. 

“Lisboa” representou tudo isto no percurso de Richie Campbell — e a fasquia estava alta para o sucessor, que chega agora. Esta sexta-feira, 17 de março, é lançado o álbum “Heartbreak & Other Stories”, que pretende consolidar o trajeto do músico e fazê-lo chegar mais longe.

O disco também será editado e está a ser promovido no Reino Unido, e o músico pretende alargar o seu impacto nos PALOP, bem como na sua principal referência, a ilha da Jamaica. Antes de conquistar o mundo, vai apresentar o álbum na Altice Arena, em Lisboa, a 27 de abril. Os bilhetes estão à venda entre os 20€ e os 29€.

Falámos com Richie Campbell sobre “Heartbreak & Other Stories” — um disco construído com os produtores Migz e Ariel — e todo este processo. Mais do que assinar colaborações marcantes ou somar mais visualizações, o artista está focado em sentir-se realizado quando, aos 70 anos, olhar em retrospetiva para o seu legado e para a obra que deixou. Leia a entrevista.

Quando é que começa a construir este álbum, na sequência do “Lisboa”? Houve um momento de transição ou simplesmente vai sempre compondo música e logo se vê como se molda ao próximo projeto? Neste caso, como é que aconteceu?
Em teoria, o processo deste álbum começou imediatamente a seguir ao “Lisboa”. A minha ideia era sempre começar a trabalhar neste álbum. Só que demorou mais tempo do que pensava porque, depois do “Lisboa” — que foi um álbum que correu super bem —, tinha a responsabilidade de fazer algo que estivesse ao nível ou que fosse melhor. E também diferente. Isto demorou cinco anos, mas não foi de propósito, não queria que demorasse tanto tempo.

A pandemia também atrasou o processo?
Não diria que atrasou, mas deu-me tempo para deitar fora tudo aquilo que tinha feito até ali. Cheguei à pandemia, que era mais ou menos a altura em que pensava lançar, e tinha um álbum feito mas não estava confortável com ele. Então fiz o exercício de olhar para as músicas e ficar só mesmo com aquelas de que tinha a certeza que iam ficar. E desse álbum há para aí uma música.

Qual é, já agora?
É a “Closer”. Que é bué antiga, fiz no ano do “Lisboa”. Depois comecei a trabalhar com o Ariel e o Migz. Comecei com o Migz quando fizemos o “The City is a Jungle” para o Fumaxa. A partir daí o processo do álbum começou mesmo, porque encontrei uma equipa fixe para conseguir fazer aquilo que queria.

Para também ter aquela coesão sonora, já que no caso do “Lisboa” tinha sido produzido pelo Lhast.
Exatamente. No outro produzi algumas cenas, neste não, só uma música, a última. Mas fiquei contente porque neste também inclui um beat do Lhast, um do Charlie e outro do Kel-P Vibes.

Quanto ao processo criativo, sentiu diferenças na forma como abordou a sua música no processo de construção deste disco?
Foi completamente diferente. No “Lisboa” tinha beats do Lhast, mas a parte criativa e de gravação fazia sozinho no estúdio, em casa. E neste o processo criativo foi mesmo em conjunto. Fizemos para aí umas duas ou três semanas fora daqui, numa casa em que fomos criar, e mesmo depois de acabarmos o álbum estivemos sempre mais em conjunto. Mesmo para mim é diferente eu escrever com outra pessoa na sala. O “Lisboa” se calhar é mais introspetivo porque estava sozinho. Essa é a diferença principal.

Apesar de aqui ter muitas canções que falam de amor e desilusões amorosas, que são temas íntimos.
Mas quando digo que é mais introspetivo, nem falo só daquilo que digo nas músicas. Mesmo a própria forma como estou a cantar, no “Lisboa” reparas que canto de forma mais leve, mais baixa… Porque estava sozinho no estúdio à noite. Aqui é diferente. Tenho sons em que canto com mais força. São pequenas coisas em que se sente.

Em que momento ou fase do processo é que chega ao título do álbum e define melhor o conceito? Foi algo pensado ao longo do caminho ou foi mais uma conclusão final?
Sim, mudou bué. Até dezembro, nem estava contente com o álbum. Não tinha nada decidido sobre como iria ser.

Mas já tinha a Altice Arena marcada.
Já, por isso sabia que ia ter de lançar um álbum. Idealmente até era para ter sido lançado em dezembro, mas é aquele perfecionismo. Queria ter a certeza de que estava fixe e, não sei, os pontos não se estavam a ligar. Em dezembro comecei a fechar o conceito, olhei para as músicas e percebi: tenho suficiente e estou contente com isto.

O conceito, o tipo de músicas, tem a ver com a sua vida pessoal? Ou está mais relacionado com o facto de os instrumentais o terem levado por este caminho?
A parte da escrita vai sempre ter a ver com a minha vida pessoal. Pode ter a ver com a minha vida pessoal no momento, pode ter a ver com todas as experiências e memórias do que já tive… Os instrumentais também foram feitos com base no que eu queria ter no álbum. Em conversa com o Migz e o Ariel: falta mais disto, falta mais daquilo… Eles fizeram sugestões e o resultado final é a mistura entre a minha visão e a visão deles do que eu deveria fazer.

Estava a comentar que tinha colocado uma fasquia mais alta porque o “Lisboa” tinha corrido muito bem e havia representado uma nova fase do seu percurso. Olhando agora para o álbum que está prestes a sair, quais é que diria que são as grandes diferenças em relação ao “Lisboa”?
Era muito importante que este álbum fosse diferente e bom o suficiente para vir depois do “Lisboa”. E para mim é mais do que isso. Estou mesmo bué confortável com o álbum, gosto mesmo de tudo o que está lá, e acho que é o “Lisboa” mais bem feito. Para as pessoas… Só o tempo vai dizer. O “Lisboa” vai ter um lugar especial na cabeça das pessoas.

Até por ser mais revolucionário no seu percurso.
Sim, até pelo momento que foi. Mas, na minha perspetiva, este álbum é tudo o que aprendi durante o processo do “Lisboa” e mais bem feito. Feito com mais calma, mais profissionalismo e com cinco anos de experiência em cima.

Tem estado cada vez mais fora. Tem sido um esforço ativo para se internacionalizar?
Sem dúvida.

Obviamente, quando estava no circuito do reggae também fez esse caminho, mas agora é diferente por ser outro circuito.
Sim, agora já não há um circuito específico, é tudo. Estou mais a pensar em zonas. O álbum também está a ser lançado no Reino Unido. Trabalhamos sempre muito para a Jamaica, porque para mim é essencial que a minha música funcione na Jamaica. Mais do que Portugal, é isso que me dá motivação. E depois Angola, Moçambique, Cabo Verde… Já estamos fixes lá. Como canto em inglês, tenho sempre essa cena porque quero que a minha música chegue aonde as pessoas gostam da minha música. E sinto que os mercados que falam em inglês vão-se relacionar de uma forma que por vezes alguns portugueses não se relacionam.

Sente que com o “Lisboa”, que marcou uma fase diferente, já conseguiu internacionalizar-se? Teve impacto nesses países?
Sem dúvida, muitos dos contactos que fiz para este álbum foram feitos à base do “Lisboa”. Nessa altura, o Fat Joe esteve em Portugal e ouviu o “Do You No Wrong” e convidou-me para ir a Nova Iorque e fez-me uma proposta. Esse tipo de cenas veio do “Lisboa”. Acabei por não aceitar porque não estava confortável com a proposta e com a visão que ele tinha para a música.

Mas ainda usou um dubplate do Fat Joe na Red Bull Culture Clash.
Ya [risos]. E ele é um grande bacano, fiquei surpreendido porque estou habituado a conhecer pessoas com um estatuto X e muitas vezes desiludo-me, mas no caso do Fat Joe, mesmo após não termos trabalhado juntos, ainda hoje é um gajo a quem faço questão de ligar de vez em quando porque ele é cinco estrelas.

Foi mais a proposta artística que não fez sentido na altura?
Sim, e nessa altura já tinha chegado a um ponto… Para mim é muito mais importante estar confortável com o que faço e poder fazer o que gosto sem limitações. Porque essa é a única forma para estar aqui contigo e estar confiante de que gosto do álbum. E no caso do Kel-P Vibes — que produz para o Burna Boy, para o Wizkid, etc — também foi um contacto através do “Lisboa”, ele é muito fã desse álbum. Mesmo o Jah Vinci, que também é um artista com quem sempre quis trabalhar, foi através desse álbum. E fui tocar às Bermudas, aconteceram muitas coisas por causa do “Lisboa”.

Estava à espera que o “Lisboa” tivesse o impacto que acabou por ter?
Não, não estava mesmo. 

Porque havia um fator risco maior do que em todos os seus outros álbuns.
Ya, se bem que quando lancei o “Lisboa” já tinha um bocado a prova de que tinha sido uma aposta ganha, porque o “Do You No Wrong” já tinha saído — e o “Heaven” também. Então já tinha percebido que as pessoas aceitavam essa diferença. Não achei é que isso fosse passar de uma ou duas músicas para o álbum todo. Sinto que as pessoas gostam muito do álbum como um todo e isso é a melhor cena que podes ter enquanto artista. É as pessoas quererem ouvir o disco do princípio ao fim sem skips.

Este novo álbum acaba por ser uma consolidação desse trajeto iniciado com o “Lisboa”, a tal nova fase, e estávamos a falar da sua internacionalização. Sente que em Portugal ainda tem por onde crescer?
Acho que sim, tenho sempre.

De certeza que com o “Lisboa” conseguiu captar novos públicos que não o ouviam antes.
Sem dúvida, isso senti bué. Qualquer som de reggae que tenha feito antes nunca bateu tanto nem chegou tanto às pessoas como o “Do You No Wrong”. Mas tens sempre por onde melhorar. Neste momento vejo as coisas desta forma: tenho mais não sei quantos anos para estar no ativo a 100 por cento, e só tenho uma tentativa. Quando tiver 70 anos, quero olhar para o meu catálogo todo e dizer: sim, fizeste exatamente tudo o que podias fazer ao nível do que podias fazer. Não me posso comparar com outro gajo qualquer, posso é comparar-me comigo e com 70 anos vou saber se fiz tudo o que poderia ter feito. Essa é mais a minha motivação. Quero chegar aos 70, olhar para o catálogo e sentir-me realizado. Porque nessa altura já não tenho outra hipótese.

E quer continuar a fazer música até aos 70 anos?
Descobri nos últimos anos que é a única coisa que me dá mesmo prazer: estar envolvido no processo criativo de alguma cena. Posso não fazer música, mas vou estar envolvido de certeza no processo criativo de músicas de outra pessoa. Isso vou sempre querer fazer.

Tem objetivos concretos para os próximos anos que ainda não concretizou?
Quero chegar a um ponto em que tenho pessoas suficientes a ouvir-me em alguns mercados para fazer um espetáculo meu. Nem que sejam duas mil pessoas. Em Londres, em Kingston, na Nigéria… Gostava de fazer uma coisa gigante em Cabo Verde porque é se calhar o sítio onde gosto mais de ir tocar. Quero esgotar uma Altice Arena. Tenho esses objetivos. Mas quero que a minha música chegue aonde tem de chegar. Não quero nem mais nem menos do que isso. 

Há pouco comentou que, mais importante do que Portugal até, era que a sua música resultasse e fosse bem recebida na Jamaica. Como é que acaba por ter essa perceção? Mesmo quando está a construir o disco, como intui que vai resultar na Jamaica?
Não há mercado que eu conheça melhor do que o jamaicano. Por exemplo, a música deste álbum com o Jah Vinci, estou bué curioso para saber como é que vai ser recebida lá. Tenho sempre algumas que sei que vão ser bem recebidas lá, mas é curioso que, no “Lisboa”… Dou-me com bué artistas de lá, e aquilo que o pessoal mais curtiu foram as cenas que fugiam mais do dancehall. Ou seja, cenas em que eu pegava numa coisa jamaicana e fazia uma evolução. Parte do atrativo e da diferença entre mim e um artista jamaicano é precisamente eu misturar as minhas influências em que a base é música jamaicana com o resto das minhas experiências — que, se fores um jamaicano, não as tens.

Tem atuado em vários países e estava a falar de adorar tocar em Cabo Verde. Sente que, em geral, dos países a que já foi, o público em África é mais efusivo?
Não diria. Não é em África, mas, por exemplo, o público jamaicano é zero efusivo. É o mais difícil do mundo. Estão super bem habituados, são seis milhões de pessoas que todos os fins de semana veem artistas melhores do que qualquer gajo que exista na Europa. Cabo Verde é bué especial porque são muito efusivos e reggae também faz parte da cultura deles, a nossa herança é um bocado a mesma. Em Cabo Verde dropo um som qualquer, as pessoas podem não conhecer mas o balanço… Reagem de uma forma que se calhar não reagem aqui se for em Viana do Castelo.

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