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Ke Huy Quan: o miúdo de Indiana Jones tinha desistido de ser ator. Agora, ganhou um Óscar

O ator de "Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo" venceu o prémio de Melhor Ator Secundário. "Dizem que histórias como esta só acontecem nos filmes."
Quan reencontrou Ford em palco.

“Mãe, acabei de ganhar um Óscar”, disse Ke Huy Quan ainda a soluçar, assim que a emoção permitiu libertar as primeiras palavras depois da conquista do prémio para Melhor Ator Secundário. A estrela de “Tudo em Todo Lado ao Mesmo Tempo” ganhou o Óscar de Melhor Ator Secundário e, ainda que muitos não o conhecessem antes, é uma velha cara conhecida do cinema.

Quan tinha apenas 12 anos quando se tornou numa das sensações do segundo capítulo de Indiana Jones, em 1984. Regressou aos ecrãs em “Os Goonies”, outro sucesso de bilheteira com a mão de Steven Spielberg. Mas, ao fim de um par de anos, desapareceu sem deixar rasto. Agora, esta vitória marca um emocionante regresso do ator de origens vietnamitas, um passado que deixou marca no discurso do ator de 51 anos.

“A minha jornada começou num barco. Passei um ano num campo de refugiados e, de alguma forma, consegui vir aqui parar, ao maior palco de Hollywood”, disse durante a cerimónia da Academia, que decorreu na madrugada desta segunda-feira, 13 de março. “Dizem que histórias como estas só acontecem nos filmes. Ainda nem acredito que aconteceu comigo. Isto é que é o sonho americano.”

Haveria ainda espaço para mais um momento de emoção no palco. A última categoria da noite, a de Melhor Filme, foi apresentada por nada mais nem menos do que Harrison Ford, o antigo companheiro de Quan em Indiana Jones. O resultado foi o que se esperava e “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo” arrebatou o sétimo Óscar da noite. Quando subiu ao palco e partilhou um forte abraço com o antigo colega de elenco. “Estou tão feliz por ele. É um tipo fantástico. É um ator maravilhoso, já o era quando era um miúdo, e continua a sê-lo”, notou Ford.

O palco foi o local do reencontro, que já tinha sido repetido em setembro numa convenção da Disney. Ford apresentava o quinto capítulo da saga Indiana Jones e Quan estava lá por fazer parte do elenco da nova temporada de “Loki”. “Assim que me aproximei, ele [Ford] vira-se para mim e aponta-me o dedo. Estava com aquele clássico esgar de zangado. Pensei que ia achar que eu era um fã e que ia dizer-me para não me aproximar. Mas aponta-me o dedo e pergunta: ‘És o Short Round?’ Fui imediatamente transportado para 1984, quando era miúdo, e respondi: ‘Sim, Indy.’ E ele disse-me para lhe dar um abraço.”

Quan percorreu uma longa jornada até chegar ao cobiçado Óscar. Nasceu no Vietname em 1971, quatro anos antes do final da guerra que começara em 1955. Os pais, preocupados com o seu futuro — e o dos seus oito irmãos —, decidiram deixar o país assim que o conflito terminou.

Em 1978, a família fez as malas em busca de um sítio melhor para viver. A mãe de Quan levou três dos filhos — um deles David, o irmão que mereceu um elogio de Quan no discurso do Óscar — e o pai os restantes.

“Era muito novo. Não entendia porque é que estávamos a deixar a nossa casa para nos enfiarmos num barco, no meio da noite, com mais três mil pessoas”, recordou Quan à “Vanity Fair”. A viagem foi tudo menos rápida. Durante um mês, os passageiros tiveram que aguardar no interior do navio pela autorização para desembarcar em Hong Kong.

Quan, o pai e os irmãos ficaram em campos de refugiados, enquanto esperavam pela oportunidade para apanhar um voo para os Estados Unidos. A mãe fez o mesmo, mas como refugiada na Malásia. A família viveu separada durante um ano, até que conseguiram reencontrar-se em Los Angeles.

“Por sorte, toda a família conseguiu viajar em segurança para os Estados Unidos. Chegámos em 1979, foi uma bênção. E ditou a sorte que quatro anos depois, haveria de conhecer um par de tipos que iriam mudar a minha vida”, recordou à “Entertainment Weekly”.

Instalaram-se na famosa Chinatown e enfrentaram, como é habitual, um moroso e difícil processo de adaptação. “Quando chegámos aos EUA, estávamos cheios de dívidas. Não nos podíamos dar a luxos como ir ao cinema”, conta. A alternativa passava por juntar a família em frente ao pequeno ecrã de televisão que tinham em casa, para verem os clássicos do cinema asiático, de Jackie Chan a Chow Yun-Fat.

Quan “nunca tinha visto um único filme americano” até ser chamado para o seu primeiro papel. Algo que aconteceu de forma inesperada. “Ser ator nunca esteve nos meus planos.”

Entretanto, Steven Spielberg e George Lucas eram os homens responsáveis pela criação da sequela do blockbuster “Indiana Jones e os Salteadores da Arca Perdida”, e andavam à procura do ator ideal para interpretar Short Round, o pequeno carteirista asiático que se junta a Indy em mais uma aventura. Sem grandes resultados através dos métodos tradicionais, resolveram passar por Chinatown e fazer um casting aberto à comunidade.

Quan nunca se imaginou como ator, mas um dos seus irmãos quis tentar a sorte. “Estava atrás das câmaras, a tentar dar-lhe algumas instruções, e o diretor de casting chamou-me e perguntou-me se eu queria experimentar.”

Quan tentou, mas não ficou convencido. “Lembro-me que correu muito mal porque a minha compreensão do inglês era mínima naquela altura”, recorda ao “The Guardian”. “Mas no dia seguinte recebemos uma chamada do escritório do Spielberg para uma reunião. A minha mãe achou que era uma coisa toda formal e vestiu-me num ridículo fato de três peças. O Steven [Spielberg] notou que eu estava desconfortável e disse: ‘Ke, adorava que voltasses amanhã, mas veste qualquer coisa mais confortável.'”

Ninguém na família sabia muito bem o que se passava, que filme era aquele, quem eram aquelas pessoas. “Nunca tínhamos visto ‘Star Wars’ ou ‘Indiana Jones'”, recorda Quan, que voltou mesmo com uma roupa mais informal, apenas para se encontrar com nada mais nem menos do que Lucas, Ford e Spielberg.

“Estivemos juntos toda a tarde e três semanas depois estava a apanhar um voo para o Sri Lanka, naquele que foi o início da maior aventura da minha vida. Esse filme literalmente mudou a trajetória da minha vida. Nunca estaria aqui se não fossem os três.”

O papel de Short Round, o improvável companheiro de aventura de Indiana Jones, tornou-o mundialmente famoso. E pelo caminho apaixonou-se pelas artes marciais.

“Cresci a ver o Bruce Lee, o Jackie Chan, por isso quando contrataram um instrutor de taekwondo para me ensinar os movimentos que faço no filme, fiquei fascinado. Inscrevi-me em aulas até ter o cinturão negro.”

Pelo caminho, travou amizade com Ford, que o ensinou a nadar nos bastidores, quando percebeu que o jovem não o sabia fazer. “Foi assim que criámos uma ligação. Toda a gente era amigável. Era esse o tipo de set que Lucas e Spielberg gostavam de ter. Não havia gritarias, mas havia sempre paz e muito riso.”

Quan deixa também palavras de apreço ao realizador por ter sido “a primeira pessoa a colocar uma cara asiática num blockbuster de Hollywood”. O ator considera que a sua presença teve um simbolismo enorme para a comunidade. “Foi uma raridade na altura e, nos anos que se seguiram, voltámos à estaca zero.”

Mas um ano depois, o telefone tocava novamente. Era Steven Spielberg, o homem que imaginou “Os Goonies”, e que queria resgatar Quan novamente.

“Lembro-me que quando saí do escritório dele, no fim das sessões de imprensa do Indiana Jones, o Steven disse: ‘Ke, já tenho o teu próximo filme. São sete miúdos e tu vais ser um deles, vai ser uma espécie de personagem 007, cheia de geringonças”, recorda. “Quando dei por ela, estava outra vez num set de gravações.”

Os dois papéis, sobretudo oferecidos por alguns dos maiores nomes do cinema, levaram-no a acreditar que, afinal, ser ator poderia ser a sua grande vocação. “Eu estava tão bem protegido, permitiram que eu fosse criança”, recorda. “E decidi também que queria ser ator. Achei que seria então o caminho mais fácil, mas estava redondamente enganado.”

Acabaria rapidamente por conseguir papéis em séries como “Nothing is Easy” ou “Head of Class”, mas as oportunidades tornaram-se cada vez mais raras. Já maior de idade, percebeu que o caminho para o estrelato era tortuoso.

“Depois dos filmes, surgiram muito poucas oportunidades. Queria trabalhar, queria fazer mais coisas. Acabei por fazer um filme no Japão, alguns projetos em Taiwan e em Hong Kong”, conta. “Era o que surgia, o que eu podia fazer, tudo para tentar manter-me ativo. Nos EUA, pouco ou nada aparecia.”

Chegou a passar um ano completo sem ter qualquer audição. Em 1993, deu por si numa sala de espera para um casting, numa sala recheada de homens asiáticos, com quem iria competir para garantir um diminuto papel de soldado vietcong com direito a apenas duas frases. Era a “dura realidade dos atores asiáticos em Hollywood”, destinados a “interpretarem uma personagem marginalizada que aparece apenas para ser morta”.

“Lembro-me se me tentar no fundo da cama e ali ficar durante uma hora, sem me mexer. Só pensava: ‘O que é que eu estou a fazer? Não posso ficar a espera que o telefone toque. ‘ Tinha 23 anos e estava perdido. Decidi que não queria viver assim.”

Deixou a interpretação mas não o cinema. Em 1992, formou-se em cinema e começou a trabalhar atrás das câmaras, sobretudo no continente asiático. Trabalhou com duplos e chegou a ser assistente de Wong Kar-Wai no filme “2046”.

Mesmo atrás das câmaras, havia algo embaraçoso: toda a gente conhecia a sua cara. “Isso tornava tudo mais difícil. As pessoas abordavam-me, perguntavam-me porque é que não voltava à interpretação. E eu lá lhes dizia que não, que isso estava acabado e que preferia trabalhar atrás da câmara. A resposta tornou-se tão automática, disse-o tantas vezes durante tantos anos que passei mesmo a acreditar nela.”

No fundo, Quan estava desesperado por voltar. “Havia dias em que desejava que fosse eu? Claro que sim”, recorda à “Vanity Fair” sobre os dias que passou a gravar Tony Leung, protagonista de “2046”. “Fantasiava com isso? Sim, mas depois o sonho era esmagado antes de poder brotar. Eu sabia que não ia acontecer. Era um sonho.”

Voltou aos Estados Unidos para tentar novamente a sua sorte neste novo ramo. Escreveu guiões, fez curtas-metragens. Nada o fazia feliz. “Não sabia exatamente o que era que me perturbava até ver ‘Asiáticos Doidos e Ricos’ [com a futura colega Michelle Yeoh no elenco]. Reparei que os atores asiáticos estavam a ter mais oportunidades e comecei a dar forma ao sonho de poder voltar, mas isso exigiu uma enorme coragem, sobretudo para o dizer em voz alta. Um dia decidi: se nunca o tentar, vou arrepender-me para sempre.” Precisava, antes de mais, de um agente. “Liguei a um amigo meu e ele disse que sim, que me representaria.”

Estávamos e 2018 e em simultâneo, Daniel Kwan estava a preparar o seu próximo grande projeto, “Tudo em Todo o Lado ao Mesmo Tempo”. Uma tarefa havia atrasado o progresso do filme: não encontrava a pessoa ideal para interpretar Waymond Wang, o simpático marido da personagem de Michelle Yeoh.

Era um papel tornado complicado pela viagem alucinante que é o filme. “Para a personagem precisava de alguém que pudesse fazer a parte dramática, a parte cómica, falar duas ou até três línguas, que fosse bom em artes marciais e, além de tudo isso, que fosse um convincentemente doce e apatetado.”

Um nome veio à memória por acaso, quando o realizador estava no Twitter e encontrou um GIF da personagem de Quan em Indiana Jones. “Comecei a fazer contas na minha cabeça e pensei que ele teria, nessa altura, a idade apropriada para o papel. O que andaria ele a fazer?”, pensou. Rapidamente percebeu que Quan deixara a interpretação e decidiu ir à procura de alternativas.

A verdade é que a notícia de que Kwan estava à procura de mais uma cara para o elenco chegou ao agente de Quan. “Ao fim de duas semanas [de decidir voltar a trabalhar como ator] recebo uma chamada sobre um projeto dos Daniels com a Michelle Yeoh como protagonista. Fiquei super entusiasmado, até porque a Michelle é a razão pela qual eu decidi voltar.”

O timing não podia ser mais perfeito. Quan foi o primeiro a fazer um casting para o papel e os realizadores Daniel Kwan e Daniel Scheinert ficaram convencidos. “Tornou-se logo no nosso favorito porque ele é o Waymond, é uma pessoa doce cheia de alegria, só quer brincar, quer sempre partilhar a energia dele. Era essa a pessoa que eu imaginei quando criei a personagem.”

Quase quatro décadas depois, Quan faz o improvável. Se o seu primeiro grande êxito se tornou num blockbuster mundial, o primeiro projeto após o regresso revela-se um vencedor a toda a prova: sete Óscares em onze nomeações. “É bom que os produtores de Hollywood o tratem bem. Ele é um tesouro”, revela Scheinert. “Já cometeram essa asneira uma vez.”

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