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“Casa com árvores dentro” sobe ao palco em Algés para refletir sobre preconceito

A NiO falou com a encenadora Cláudia Semedo e com a escritora Gisela Casimiro sobre o espetáculo, em cena até 27 de novembro.
Uma peça impactante. Créditos: Alípio Padilha

Quem for até ao Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, em Algés, até dia 27 de novembro, não irá apenas assistir a um espetáculo, confortavelmente sentado nas cadeiras da plateia. Prepare-se para entrar numa casa onde irá conhecer cinco personagens, que levam a palco uma narrativa forte e impactante, expondo uma realidade que nos parece tão distante mas que, na verdade, não o é.

Esta “Casa com árvores dentro” vai levá-lo a refletir, questionar, e ficar com aquelas vozes a ecoar em si durante muito tempo. Conta a história de uma família, não de sangue, “forçada a partilhar um lar construído a partir de profundas fraturas sociais e discriminações várias”, como se lê na sinopse. É ali que vemos como crescem as raízes do preconceito, num argumento que fala sobre discriminação sexual, étnico-racial, gordofobia, passando também pela saúde mental nestas comunidades e camadas mais jovens, numa revolta contra o sistema que não vai deixar ninguém indiferente. 

“Casa com árvores dentro”, em cena com a Companhia de Actores, é uma ideia original da atriz Cláudia Semedo que, aqui, assume o papel de encenadora. Encontramos, neste espetáculo, uma casa de acolhimento, onde estão quatro jovens e uma cuidadora, que prendem a atenção do público desde o primeiro minuto. “Queremos falar desta realidade, destas casas que se formam com famílias que não o são na sua origem, não o são na sua forma mais normativa, mas que funcionam como tal, pelas relações que se estabelecem”, revela Cláudia à New in Oeiras.

Gisela Casimiro é a responsável pelo texto. A escritora revelou à NiO que ficou muito contente e entusiasmada com este convite. “Senti o peso da responsabilidade. Existe uma grande necessidade de se falar destes temas, que sabemos que vão ter impacto no público, mas também o têm em nós. Comecei a pensar no quão profundo eu teria de mergulhar para poder responder a essas questões ou tentar, pelo menos, que elas surgissem e ecoassem em alguém. Foi muito complexo, porque nunca tinha escrito um texto para teatro”. 

Depois de uma pesquisa intensa, com várias entrevistas, leituras, documentários, discussão dos temas entre a equipa e a própria experiência de Gisela, partindo de vivências pessoais e de histórias de pessoas que fazem parte da sua vida, a escritora conseguiu dar voz a estas cinco personagens. “É uma experiência emocionante e aterradora, porque não se consegue fazer um projeto destes sem nos envolvermos absolutamente. E o teatro é muito absorvente”, garante.

O processo de escrita foi desafiante para a escritora. “É uma peça que trata de temas difíceis. É uma ficção que parte de várias realidades, recorremos a várias pessoas e experiências que passámos e que ouvimos, tudo isso foi importantíssimo para chegar a este lugar. Mas tudo isso vem também de uma experiência numa casa de acolhimento em que eu estive e do quão me marcaram aquelas pessoas. Há também uma pessoa na minha família que sempre trabalhou como cuidadora e, por conhecer várias pessoas nessa posição, consigo refletir sobre o que isso quer dizer, porque como mulher negra, é um papel que muitas vezes nos é relegado”, sublinha. 

Ana Madureira, Catarina Marques Lima, Natacha Campos, Pedro Peças e Vânia Luz são os atores que dão vida às personagens desta história: Dê, Lê, Pê, Cê, e a cuidadora Kapa. “Temos quatro jovens, cada um com a sua personalidade, com problemas que vão muito para além deles, que estão fundados nas nossas estruturas e que alteram a sociedade de forma muito silenciosa, mas destrutiva. É sobre essa realidade da homofobia, gordofobia, racismo, que queremos falar, sem estarmos à espera de dar nenhuma resposta. Estamos a levantar reações e realidades e o resto deixamos no ar, para que o público procure as suas respostas e, idealmente, ausculte os seus comportamentos”, afirma. 

Para Gisela Casimiro, é muito importante que os jovens, em particular, vão até ao teatro assistir à peça. “Quis fazer a peça de forma apelativa para os jovens, falei com vários para saber como se identificam. Porque, no fundo, trata-se de um olhar microscópico de uma casa, para perceber o que é ser forçado e ostracizado, como é que as pessoas vão lá parar e como é que o mundo as acolhe quando elas saem. Não deixamos de nos rever nelas”, afirma. 

Créditos: Alípio Padilha

“A arte tem o papel de dialogar com o público”

“Enquanto criadora, procuro sempre estas fraturas sociais, estes preconceitos que nos separam e que não fazem grande sentido. Essas discriminações, desigualdades, injustiças, sempre me inquietaram muito. Procuro trabalhar esse ponto de vista, de observação do mundo e do meu posicionamento perante ele”, garante a atriz e encenadora Cláudia Semedo.

Dessa inquietação, nasceu um projeto muito especial: o “|PÊ| — Prefixo de Desumanização”, que se caracteriza como uma ferramenta de pensamento, de transformação social e cívica, onde através da arte se criam pontes, se dão a conhecer novas realidades, onde as minorias têm lugar de fala e onde se expõe a discriminação. 

À NiO, a artista contou que a peça “Casa com árvores dentro” surgiu no âmbito deste projeto: “O ‘PÊ – Prefixo de Desumanização’, nasce de uma conversa, onde um dos intervenientes aborda a questão de, antes de ser a pessoa que é, e se poder apresentar no esplendor da sua singularidade, mal chega a um sítio já é o preto, o gordo, já seria o cigano ou o gay, por exemplo. Regra geral, já temos uma série de pré-conceitos estabelecidos quando nos inserimos num grupo. E isso não é justo, porque todos temos direito à nossa existência singular”.

“As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça, fiquei a pensar nisso, e nessa mesma noite escrevi o PÊ, este manifesto, este lugar de questionamento sobre esta impossibilidade de uma existência singular antes de sermos um coletivo, para o qual não se olha, mas sobre o qual se tem imensas perspetivas e visões. Falei com a Companhia de Atores e achámos que fazia sentido avançar com a ideia”, conclui Cláudia. 

Decidiu, assim, criar uma equipa que a ajudasse a dar vida a este espetáculo. Convidou a escritora Gisela Casimiro para escrever o texto, Kalaf Epalanga para a curadoria musical, Rodrigo Ribeiro Saturnino para a cenografia, Paulo Subtil para os figurinos e Sérgio Gaspar para a iluminação. 

“Penso que devemos dar a arte aos seus artesãos, então chamei pessoas que considero que fazem um excelente trabalho nas suas áreas. Sabia que queria fazer uma cenografia que fosse muito para além do lado do funcional e que tivesse ela própria uma mensagem. Sabia que queria uma música impactante e com personalidade, com sonoridades e texturas diferentes. E, para escrever, pensei logo na Gisela, já conhecia uma parte do seu percurso, estamos juntas também num projeto que é a UNA, União Negra das Artes e sempre me identifiquei com o que ela dizia”, conta Cláudia.

Gisela Casimiro confessou à NiO que, mesmo antes de ter o texto escrito, já tinha o nome da peça. “Como escritora, gosto muito de títulos e, às vezes, surge-me primeiro o nome do projeto. Este era um título que já tinha guardado, pensei que fosse um romance, mas virou um texto de teatro e acho que casou muito bem, porque assim que surgiu a questão da casa de acolhimento pareceu-me o título ideal. Nenhum outro me fazia sentido”. 

Além do resultado final, a que o público pode assistir semanalmente, para Cláudia, todo o processo até aqui chegar foi muito especial. Garante que encenar esta peça trouxe-lhe muito mais do que estava à espera. “A arte tem o papel de dialogar com o público, mas os processos são sítios de grande transformação. Queremos que o público saia daqui com questões, que se interrogue, que pense sobre elas, mas a verdade é que o processo tem sido todo assim, de levantamento de questões e de muita escuta. Temos discutido muito em equipa, nos ensaios, com diferentes temas e posições, é uma construção coletiva. Foi muito bonito fazer este percurso, temos todos aprendido muito uns com os outros”, conclui. 

Para a companhia e todos os envolvidos neste espetáculo, este é, sem dúvida, um trabalho importante e necessário para que se consiga, cada vez mais, criar uma consciência social informada e sensível à diferença, contribuindo para a construção de um mundo mais justo, igualitário e representativo.

Esta “casa” abriu as portas ao público no dia 27 de outubro, e fica em cena durante um mês, até 27 de novembro. Nesse dia, domingo, a sessão irá decorrer da parte da tarde, às 17 horas. Fora essa exceção, a peça vai subir ao palco todas as semanas, entre quinta-feira e sábado, sempre às 21 horas. 

O valor do bilhete é de 10€. Pode adquiri-lo online ou reservar através do número de telemóvel 919 714 919 ou do email cda.reservas@nullgmail.com. Siga a Companhia de Actores no Facebook e Instagram para estar a par de todas as novidades. O Teatro Municipal Amélia Rey Colaço fica na Rua Eduardo Augusto Pedroso 16A, em Algés.

De seguida, carregue na galeria para ver mais algumas imagens do espetáculo. 

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